Para a maioria de nós, é quase impossível compreender a ferocidade e a regularidade com o qual a vida virou de cabeça para baixo durante a primeira metade do século XX. Peste e conflito surgiram em uma escala épica, repetidas vezes. Epidemias e conflitos eram rotineiros; desastre foi a sua própria estação. Aos 101 anos, Naomi Replansky, poeta e ativista trabalhista, passou por tudo isso. Nascida no apartamento de sua família na East 179th Street, no Bronx, em maio de 1918, sua chegada ao mundo coincidiu com o início da gripe espanhola. A gripe espanhola, que matou dezenas de milhões de vidas, muitas delas crianças menores de cinco anos, dificilmente foi uma emergência de saúde pública isolada. A poliomielite havia sido designada epidemia na cidade de Nova York em junho de 1916. Naquele ano, 2 mil pessoas morreram da doença na cidade. Dos que viveram, muitos ainda tinham lembranças muito vívidas da erupção de febre tifóide que tomou conta da cidade nove anos antes. Até a aplicação da vacina contra a poliomielite na década de 1950, ocorreram surtos em algum lugar do país quase toda primavera. Reuniões públicas eram regularmente canceladas; pessoas ricas nas grandes cidades partiram para o interior. No início da década de 1920, a irmã bebê de Naomi foi atingida, deixando uma de suas pernas permanentemente paralisada. A mãe delas depositara esperança nas terapias aquáticas empregadas por Franklin Roosevelt em Warm Springs, na Geórgia, mas essa esperança foi em vão. — Foi um incentivo moral, um lugar alegre, mas não curativo — disse-me Naomi recentemente. Mais tarde, quando Naomi estava com 12 anos de idade, seu irmão de 15 anos desenvolveu mastoidite. Na ausência de antibióticos para tratá-lo, ele morreu rapidamente do que é essencialmente uma infecção no ouvido. Dois fins de semana atrás, enquanto os nova-iorquinos absorviam a enormidade da crise atual, Naomi e sua esposa de 95 anos, Eva Kollisch, estavam em casa em seu apartamento de um quarto no Upper West Side de Manhattan, ouvindo Marian Anderson em vinil. O álbum era "Spirituals" e foi dado a elas por um de seus ajudantes regulares. Elas não estavam perturbadas. — O confinamento não me incomoda — Naomi me escreveu em um e-mail. — Meu quadro instável pode lidar com mais confinamentos. Naomi e Eva foram apresentadas por Grace Paley em uma leitura de seu trabalho na década de 1980. Elas já haviam passado da meia-idade, muito depois das tragédias e das perturbações sociais das décadas anteriores as terem tocado com tanta intimidade. Quando a catástrofe é sequencial, ela eventualmente treina seus sobreviventes a saudar o terror com a serenidade dos iluminados. Eva e Naomi experimentaram o antissemitismo em tenra idade. Eva, que foi criada em uma família de ricos intelectuais judeus fora de Viena, lembra-se de ter sido espancada por um grupo de crianças por ser uma "judia suja" quando ela tinha seis anos. Durante sua infância no Bronx, Naomi ficou íntima das transmissões de rádio fascista do padre Coughlin, que sempre emanavam das janelas abertas de East Tremont durante o verão. Seus avós haviam escapado dos pogroms na Rússia, chegando aos Estados Unidos na virada do século, quando os hábitos dos imigrantes - considerados imundos e ignorantes - eram continuamente culpados pela propagação de doenças. A primeira revolta de Eva veio com a guerra. Um ano após a anexação nazista da Áustria, em 1939, ela fugiu pelo Kindertransport, uma série de esforços de resgate que colocavam crianças judias em lares britânicos. Eva, então com 13 anos, viajou com os irmãos primeiro de trem para a Holanda e depois de navio para a Inglaterra. “No minuto em que chegamos à Holanda, parecia tão maravilhoso que havia pessoas gentis na plataforma da estação. Eles te davam suco de laranja e sorriam para você”, Eva disse certa vez a uma entrevistadora para um projeto feminista de história oral. A princípio, ela pensou nisso tudo como uma aventura. "E então, quando estávamos na Inglaterra, logo percebi que estava extremamente sozinha”, continuou. Eva e seus irmãos foram enviados para casas diferentes, enquanto seus pais ficaram para trás. Em 1940, a família escapou do Holocausto e se reuniu nos Estados Unidos, desembarcando em Staten Island, Nova York. Naquela época, os pais de Eva haviam perdido tudo e, portanto, sua mãe trabalhava ensinando inglês a refugiados por 25 centavos de dólar por hora para ganhar dinheiro e se tornar massagista. Seu pai, que fora um arquiteto de destaque na Áustria, vendia aspiradores de pó.*G1